sábado, 15 de janeiro de 2011

TRON, um legado


Longe estamos do outrora sonhado universo de Steven Lisberger, senhor a quem podemos atribuir a autoria do primeiro filme TRON (1982). A computação era então uma fantasia obscura distante de muitos e o Santo Graal para os mais ingénuos físicos. Estávamos no início dos anos 80 e esperava-se que a cada ano o poder do computador ultrapassasse à razão do dobro, tudo o que a sua história conseguira até então. Os mistérios que esta nova realidade escondiam sob minúsculos circuitos, e as imensas operações matemáticas que se davam em fracções de segundo, atiçavam o imaginário para uma nova geração que cresceu ao lado destes novos aparelhos, e que pareciam de tudo ser capazes.
TRON era um revolucionário videojogo disponível através dos míticos salões de jogos, Kevin Flynn proprietário de um e criador do jogo. Trabalhava numa empresa que operava na vanguarda da técnica, a ENCOM, e cujo Vice-Presidente Ed Dillinger reivindicava a autoria do sucesso do jogo. Flynn, consciente da fraude decide invadir os computadores da empresa como forma de recolher evidências da mentira de Dillinger, mas heis que este já tem criado um Master Control Program (MCP) responsável pela autoridade nos servidores (computadores da empresa). Flynn consegue ser digitalizado e entrar neste mundo idílico da tecnocracia, domina a ordem e os pressupostos de racionalidade para uma sociedade utópica à luz dos fundamentos da computação (uma sociedade de ordem matemática). Aqui, toda a entidade tem uma função, muito especializada, já que ela não é mais do que um código a ser executado pelo processador com a vista a uma tarefa específica. Este mundo aparece-nos em jeito de fábula, os programas são indivíduos de luz com fisiologia humana (à imagem dos seus criadores), e o computador todo um mundo com metrópole e serviços básicos.

Este parece-me ser o centro do universo TRON, uma analogia às tentativas de transmutar a ordem de carácter científico e o rigor matemático para toda uma realidade errática como a nossa e onde todos parecem querem impor-nos um significado. Tron, um programa criado por Alan Bradley, colega de Flynn, para monitorizar o MCP, encontra Flynn mergulhado no sistema e juntos personificam uma frente de combate às barreiras da exactidão, do racionalismo, da lógica inflexível da matemática e do propósito, quer seja dos programas como de todo o sistema em si. O criador de videojogos busca em Tron a ajuda para sair da realidade em que se encontra prezo. Isto cria um precedente no mundo virtual em que duas entidades presentes no sistema, se mantém animadas sem qualquer propósito além da sua mera existência. As regras do sistema são quebradas e o MCP dirige os esforços de toda a máquina virtual para travar estes dois parasitas que sem razão de ser, contribuem apenas para perda de eficiência de um sistema na execução das suas funções normais.

A trama continua no novo filme de 2010 TRON, o Legado. Aqui Flynn é encontrado pelo filho, refém novamente num mundo virtual, este novo chamado de Rede (GRID). Na ambição de criar uma nova realidade virtual capaz de alterar a relação entre os seres humanos e a cibernética, incorre na obsessão pela perfeição, criando um programa naquele mundo digital à sua imagem, o Codified Likeness Utility (CLU). Flynn (com a experiência da vida?) apercebe-se que é o livre arbítrio, o comportamento errático e este vazio de significado que atribui significação à nossa existência ou pelo menos àquilo que é ser humano, ao passo que criar um mundo virtualmente antitético em relação a esta concepção seria mais uma forma de acentuar as assimetrias entre as duas realidades e conduzindo portanto ao afastamento entre as duas.

Entretanto, lembrando-nos que um mundo virtual na prática existe dentro de uma máquina, pois está presente na nossa realidade, segregado num conjunto de regras matemáticas que o isolam em termos lógicos do exterior, mantém ainda uma ligação com a natureza pelo que tarde ou cedo surgem Isomorphic Algorithms,ou ISOs no interior do sistema. Estes seres são uma nova espécie de programa que à imagem da vida na Terra há milhares de milhões de anos, surgem num ambiente propício aparentemente do nada (e portanto de tudo). Estes novos programas são únicos e diferentes entre si, não foram criados com algum propósito ou por algum criador, representam portanto um entrave ao mundo perfeito baseado nas lógicas racionalistas e da eficiência em que CLU acredita. Quora, a protegida de Flynn é o único ISO sobrevivente e guarda em si a essência da transformação da GRID/Rede em algo melhor. Neste duelo existem alusões claras a um ideal de sociedade (erradamente interpretadas) neste segundo filme, é utilizado o termo "purgas" várias vezes, CLU encarna o papel de um ditador na posse de um exército que lhe confere legitimidade e tal e tal, a sociedade é "dirigida" a partir de um posto (indivíduo) de controlo que centraliza o poder sobre todas as operações. Poderia desenvolver este raciocínio mas não para já. O velho programa Tron é agora encontrado docilizado na posição de soldado de CLU, a certa altura este apercebe-se que foi criado com o propósito de defender os utilizadores do MCP e urge então fazer o mesmo em relação ao CLU, ajudando Flynn & Flynn a escaparem daquele universo. Num momento final, Flynn pai sacrifica-se salvando o filho e Quora enquanto aniquila as luzes amarelas e vermelhas das redondezas (incluindo CLU) que no filme simbolizam a maldade em contraste com o Azul Turquesa.

Certo é que pregando desde 1982 a ruptura com lógicas racionalistas perigosas no mundo real, a saga TRON assume um significado para mim, muito além de um mero filme de ficção e deslumbramento visual, que é numa grossa crosta essencialmente do que se trata. Não querendo ser demasiado óbvio, encontro na realidade essas lógicas personificadas por um sistema económico predador e que em analogia ao filme, reduz toda a diversidade de uma sociedade à função que os indivíduos possuem na manutenção do sistema. É para mim do que trata, um fôlego de libertação.

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